#blackAF: por causa da escravidão
P. S. Trata-se de um texto escrito em 2020, mas a reflexão continua pertinente.
A série de comédia #blackAF teve recentemente sua segunda temporada confirmada. Ela estreou em abril deste ano, na Netflx, contando com oito episódios. No entanto, apesar da boa recepção do público e com uma acolhida moderada por parte da crítica, a série tem causado uma certa polarização [1].
A série foi criada por Kenya Barris, que também criou a sitcom Black-Ish. Em #blackAF, Kenya Barris interpreta a si mesmo numa versão exagerada. Na produção da Netflix, ele é um criador de séries de sucesso negro, que enriqueceu fazendo séries sobre pessoas negras, é casado com Joya e tem um total de seis filhos.
Por causa da escravidão
A série é um pseudodocumentário, pois do início ao fim, o espectador é informado que Drea, uma das filhas de Barris, está gravando um documentário para a universidade a qual ela deseja ingressar. Sendo assim, o cotidiano da família é gravado e cada personagem é convidado a refletir sobre suas ações, de uma maneira que lembra muito Modern Family.
Sendo uma família negra e bem-sucedida financeiramente, a série mostra como os personagens ainda estão sujeitos a sofrer por causa do racismo. Todos os títulos dos episódios têm uma frase que se repete: “por causa da escravidão”. Dessa maneira, os problemas do cotidiano da família são ligados ao contexto mais amplo da história das pessoas negras e a escravidão nos Estados Unidos. Algo que nem sempre pode ficar tão explícito [2].
Para evidenciar essa relação com o passado, a série traz recortes da história, ou artigos e notícias que visam explicar a problemática que está sendo exposta. Por exemplo, o primeiro episódio traça um paralelo entre a ideia de que o fato de uma pessoa negra estar bem-vestida significa que ela será aceita, isso remete ao período da escravidão em que as pessoas escravizadas recebiam boas roupas para irem à igreja no domingo. Lá o clima de festividade gerava a impressão de aceitação.
O dinheiro não oferece redenção
Algo que fica evidente na série é que a ascensão social não redime ninguém. O sucesso e a fama não tornam necessariamente Kenya um homem melhor. Pelo contrário, o dinheiro possibilita que ele alimente vícios como o consumismo. Sua compulsão em gastar dinheiro para produzir o seu bem-estar é algo lamentável. A solução de tudo para Kenya parece estar no dinheiro, ou ser resolvido por ele. Algo que é reproduzido pelo restante da família.
Sendo assim, Kenya usa a desculpa de ser um homem negro bem-sucedido para não criar seus filhos e deixar tudo sob a responsabilidade da sua esposa. Uma postura muito comumente criticada por mulheres negras, como a filósofa Djamila Ribeiro [3], é o quanto homens negros estão disposto a assumir a realidade do racismo, mas não a realidade do machismo. Kenya espera que sua mulher faça tudo pelas crianças.
Pessoas negras não podem ser criticadas?
Um dos pontos altos da série é quando Kenya, sua esposa Joya e sua filha Drea vão assistir a um filme no cinema. Um filme com pessoas negras. Todo mundo no cinema morre de rir do filme, menos Kenya e sua filha. Ele fica irritado por as pessoas terem gostado tanto de um filme que ele considera ruim. Para sua surpresa, ele é convidado para fazer uma roda de conversa com o produtor do filme que também é negro.
Ele fica muito aflito com essa situação. Para obter mais elucidação sobre suas inquietações, ele procura a ajuda de outros amigos e amigas que também são criadores de filmes, séries e são negros. A princípio, quando ele pergunta se eles assistiram ao filme e o que acharam, a reação deles é negativa, mas ao saberem por quem foi produzido, eles elogiam o filme.
Segue-se uma discussão interessante sobre críticas a produções de pessoas negras. Kenya fica muito perturbado porque os amigos não conseguem criticar o produtor do filme, porque ele é negro. Ele fala sobre a necessidade de ser crítico à produção de pessoas negras também e não simplesmente aceitá-las porque foram feitas por pessoas negras.
A discussão fica bastante acalorada, Kenya faz críticas aos filmes e séries dos seus amigos e eles fazem críticas ao trabalho dele. Kenya parece ser visto como o traidor do seu povo.
Com essa discussão interessante, o que o produtor e não somente o personagem Kenya parece estar sugerindo é que o fato de ele ser negro não torna ele isento de críticas. Que suas produções podem e devem ser criticadas como quaisquer outras.
Encerrando
Para finalizar, o criador de #blackAF foi criticado por estar repetindo algumas histórias. Que alguns dos problemas aparecem em outras produções dele. Ele já respondeu a isso dizendo que algumas histórias precisam ser recontadas. De fato, a repetição é um fator muito instrutivo na educação. #blackAF pode parecer só mais uma história clichê, mas tem um grande potencial de gerar reflexão.
Com as discussões sobre representatividade super acaloradas, #blackAF oferece possibilidades de imaginar situações que geralmente não passam pelas nossas cabeças [4].
Referências
1. Disponível em:
https://spinoff.com.br/kenya-barris-rebate-criticas-sobre-a-serie-blackaf/ Acesso em 01 de julho de 2020.
2. Disponível em:
https://www.omelete.com.br/series-tv/criticas/blackaf-critica Acesso em 01 de julho de 2020.
3. Em entrevista à revista Cult, edição 247, julho de 2019.
4. Para mais informações sobre representatividade, eu escrevi um pouco sobre isso em um outro texto. Disponível em:
https://medium.com/@vivemcomunhao/10-pr%C3%A1ticas-para-voc%C3%AA-aderir-na-luta-antirracista-e069bc35b5 Acesso em 01 de julho de 2020