E se meu corpo tivesse gênero?

Vivendo em Comunhão
6 min readFeb 24, 2024

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Começando a pensar

Entramos agora em um terreno mais nublado. Se raça parece algo explícito, gênero tem uma certa semelhança. Enquanto a sexualidade está no campo do desejo, do imaterial, do pode ser. O gênero tem uma aparência mais concreta. Nosso mundo foi arquitetado binário. Roupas, banheiros, perfumes, sabonetes ad nauseam.

As feministas têm contestado há décadas essa estrutura binária. Antes, era suficiente as mulheres brancas poderem votar e trabalhar fora de casa sem a permissão do marido. Agora elas lutam, no geral, pelo direito à equidade, para que todas as pessoas recebam as oportunidades e as condições para executá-las. É válido mencionar que todo movimento tem seus radicais. Com o feminismo não é diferente.

Uma crítica necessária

A crítica severa de Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher: torna-se”. Não era uma anulação da existência das mulheres antes, era um chamado a olhar o caráter histórico do que é ser uma mulher. A mulher não nasce sabendo elaborar refeições, cuidar dos filhos e do marido.

Isso levou a crítica literária Julia Kristeva a ir além: estritamente falando, não se pode dizer que existam “mulheres”. A negação da categoria mulher é uma crítica ontológica para desmontar o caráter histórico do ser mulher. É uma reação às teorias essencialistas, que dizem que não consideram o caráter histórico do sujeito mulher.

Como ficam os homens e pessoas não binárias diante disso?

Toda essa crítica feita às mulheres pode ser feita aos homens e pessoas que se identificam como não binárias. O fulcro das ideias anteriores é esse: gênero não tem essência, algo inato.

Homens não nascem sabendo caçar, dirigir, liderar, vestir calças. Essas situações são historicamente construídas. Parafraseando Butler: gênero é um ato de fala performativo, estilizado, cristalizado e que cria a aparência de verdade.

Pessoas não binárias não nascem assim. Elas são levadas, por diversas circunstâncias, a se identificarem de tal forma. Não existe uma ontologia não binária. Não binários não estão destinados a pintar a unha, usar cropped e a usar pronomes neutros.

Pausa para algumas histórias

Quando eu era criança, eu não gostava da maioria das brincadeiras de menino. Detestava futebol. Eu era tão ruim que sempre me botavam no gol e eu ainda deixava a desejar. Talvez porque eu fosse gordinho eles achavam que eu pudesse interromper mais a entrada de bolas. Eu tentava jogar por socialização, porque era o que todo garoto fazia.

Em contrapartida, eu adorava jogar videogame e brincar de boneca com uma amiga que era filha da amiga da minha mãe. Eu adorava também pular elástico. Essas últimas duas brincadeiras eram rotuladas como de meninas.

Eu lembro que uma vez, em que eu entrei em crise: por que eu não nasci menina? Seria tão mais fácil. Na adolescência isso foi apaziguado, porque havia ganhado um PS2. Vários adolescentes queriam jogar comigo. Eu finalmente descobri algo em que eu era bom.

Depois vieram os RPG online. Eu podia escolher quem eu queria ser. Homem ou mulher e lógico que escolhi uma mulher. Não fui zoado por isso porque vários outros rapazes fizeram a mesma coisa. Não pelos mesmos motivos. Mas pela possibilidade de obter vantagens de personagens masculinos. Uma vez que até casamento tinha no jogo. Era literalmente eu naquela personagem de RPG. Gastei incontáveis reais só para ter aquela sensação de ser uma personagem feminina. Isso não durou muito.

Reprovei em um bimestre e para me vingar, fiz um trabalho colossal sobre crônicas. Isso acabou me empurrando para o mundo da leitura, que se tornou meu hiperfoco no final de 2010. Ganhei um prêmio de aluno destaque, que consistia em um ingresso para o Teatro Arthur Azevedo, o segundo teatro do Brasil.

Mudando para Goiás e enfrentando problemas

Em 2011, eu mudei de São Luís, Maranhão para Senador Canedo, Goiás. O fato de eu ser um dissidente de gênero nunca incomodou minha família (minha mãe e meu irmão).

As coisas passaram a ficar problemáticas quando em 2013 eu entrei para a igreja presbiteriana do Brasil. Havia uma certa obsessão pelo fantástico “homem bíblico”. Então começaram uma formação: como tornar o Reginaldo afeminado no Reginaldo homem bíblico?

Foi extremamente extenuante. Tive um conselheiro que dizia que minha risada espalhafatosa fazia eu parecer gay e eu tinha que mudar isso. Me deu um livro sobre o homem bíblicou e me incentivou a tentar namorar uma garota lésbica da minha antiga comunidadade. Contou uma estória esdrúxula que havia filmado um rapaz que era aconselhado por ele andando. E que o rapaz andava rebolando. O rapaz conseguiu corrigir isso e hoje era casado com uma mulher.

Havia outros homens que reforçavam estereótipos em nome de Deus, o que complicou tudo.

Onde meus pés podem falhar

No final de 2018, com todas as tensões políticas, eu acabei migrando para uma igreja que seguia o calendário litúrgico e servia a ceia toda semana.

Em 2020, o luteranismo se tornou muito popular no meu círculo de Amizade que se restringia principalmente à internet. Concomitantemente, tornou-se popular o reconhecimento da ONU de mais de 30 identidades de de gênero.

A maioria dos meus amigos eram compostos por não heterossexuais, principalmente gays. Todo mundo se considerava homem cisgênero. Foi então que isso começou a ruir. Uma amiga que se identifica como trans hoje, começou a nos apresentar várias identidades de gênero.

Eu comecei me identificando como demiboy, que é uma pessoa que se identifica parcialmente com o gênero masculino. Com o passar do tempo isso foi ruindo. Demiboy parecia pouco. Depois me identifiquei como pangênero e, por último, agênero. Eu disse, sim, a todas as identidades de gênero. Criou-se toda uma estética em torno disso, pintar as unhas, usar cropped, comprar roupas na sessão feminina (algo que ainda faço sem receio). Enfim, era cansativo sustentar uma identidade não binária. Eu estava tirando o dinheiro dos pobres para sustentar uma causa que não acredito mais.

Em 2021, eu tive um episódio maníaco. Que é o extremo oposto da depressão. Foi algo horrível. Eu perdi totalmente o controle da minha consciência e virei uma máquina de ódio megalomaníaca. Enfim, isso foi um dos motivos que me empurraram para fora do luteranismo e me fizeram ser abraçado pela Igreja Católica.

Depois de frequentar a igreja com mais frequência e de me relacionar com vizinhas e vizinhos eu pude ter uma noção melhor da realidade. Ninguém nunca me criticou por ir de cropped para a Igreja, ou unhas pintadas (coisas que não faço mais). Eu era bem-vindo.

Foi então que eu resolvi definitivamente desistir da minha identidade de gênero. Ao contrário do que a militância faz parecer, identidade de gênero não é um fenômeno universal, pelo contrário, é algo impreciso e instável.

Caminhando para o fim

David Halperin, um dos mais renomados teóricos queer, comentou uma certa vez que é essencial a multiplicação das identidades, para o seu fim. Isso vai gerar uma espécie de esvaziamento dos rótulos e um niilismo de identidade sexual e de gênero.

Nós temos a chance de antecipar isso. Precisamos resistir a essas pressões. Não somos cis nem trans, somos corpos com genitáliasdiferentes. Nós podemos argumentar que cis e trans são binários demais para a experiência humana. Talvez esse seja o ponto central, o sistema de identidade não consegue abarcar todas as identidades de gênero. Colocamos como dado que eu sou um macho. Quantos machos existem iguais a mim? Parafraseando aquela escritora: existe uma identidade de gênero para cada sujeito.

Com essa argumentação, eu não quero invalidar a experiência de pessoas trans e travestis e outras identidades dissidentes. Respeitar os pronomes, ser cordial é essencial para um bom diálogo e como disse o ET bilu: busquem conhecimento.

Antes de entrar na faculdade eu já tinha problemas de gênero. Quando entrei em 2015, na faculdade, passei a pesquisar com mais acuracidade. Existe um mundo desconhecido e que pode continuar desconhecido.

São discussões sobre o sexo dos anjos. Que não tocam o chão da dona Maria. E não enchem o bucho Zezinho da periferia.

Essas pesquisas costumam beneficiar apenas quem a faz. Fora a sensação de clubismo “Eu consegui ler Foucault”, “Eu consegui ler Butler”. Há uma satisfação intelectual nisso tudo. Mas foi para isso que fomos chamados? Para sentir satisfação intelectual ou para alimentar os pobres? É lógico que é possível fazer as duas coisas. Mas a universidade não nos ensina a fazer caridade.

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Vivendo em Comunhão

Iniciativa fraterna interessada em promover a perspectiva cristã saudável sobre gênero, sexualidade, raça, Comunhão, Amizade e Hospitalidade.