E se meu corpo tivesse sexualidade?

Vivendo em Comunhão
8 min readMar 3, 2024

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Um fundo amarelo. Uma mulher branca expressando surpresa e um rapaz negro falando ao ouvido dela e com uma mão na frente como se tivesse contando um segredo. E o segredo é o título do texto “E se o meu corpo tivesse sexualidade?”.

Você não consegue me rotular.

Karol conká

Cravar um rótulo em alguém é tão atroz quanto retirá-lo.

Michel Foucault

Eu serei tantas, que eles nunca saberão quais sou, quais finjo ser.

Urias

Pensando sexualidade: prolegômenos

No primeiro ano do ensino fundamental, eu lembro que um garoto me provocou, chamando-me de bicha. Eu não sabia muito bem o que significava bicha, mas entendi perfeitamente que ele estava querendo me ofender. Como eu lidei com esse “insulto”? Eu dei um soco no rosto dele e logo começou uma briga generalizada no pátio.

Fica aqui a minha dica, em vez de rodas de conversa sobre sexualidade, deveria se investir em cursos de autodefesa para pessoas que são constantes alvos de violência. O Estado não é ubíquo e quem vai querer se meter com uma pessoa que sabe se defender?

Eu segui, em parte, o script gay. Garoto afeminado. Adolescente que não se encaixava no grupo dos meninos e andava com as meninas. Que passou a consumir pornografia e a se masturbar por pressão do grupo dos adolescentes normais.

Quando eu tinha 15 anos, eu mudei para Senador Canedo, Goiás. Um amigo me falou que era assexual. Eu achei o conceito interessante e passei a me identificar assim. Na verdade, no meu ensino médio inteiro eu adorava ir à biblioteca municipal pegar livros e ler.

Eu não tinha tempo para pensar em sexo e sexualidade, eu estava muito ocupado querendo me tornar uma pessoa inteligente. As pessoas à minha volta diziam que eu era inteligente e eu queria estar à altura desse rótulo. Lia livros sobre inteligência múltipla e tudo.

Eu passei de 2011 a 2014 sem pensar de maneira significativa na minha sexualidade. Até que, frequentando uma igreja presbiteriana, um pastor passou a ser bastante invasivo no seu “aconselhamento bíblico”. Perguntou por que eu não tinha uma namorada. Eu nunca tinha parado para pensar nisso. Ele disse que Deus havia me dado um carro e eu não podia deixá-lo na garagem. Essa foi a analogia mais esdrúxula que já ouvi. Sempre que posso repito ela com leve risinho rs,

E se eu for gay?

Enfim, acontece que o pastor desconfiava que eu era gay e não sabia como introduzir o assunto. Inventou uma simulação de debate entre os jovens, no qual um lado defenderia a inclusão e o outro a ortodoxia. Foi uma programação que não me senti à vontade para participar.

Foi então que eu comecei a entender que ele estava sugerindo que eu fosse gay. “E se for verdade? Eu não tenho interesse em me casar. Só posso ser gay!” E foi assim que comecei a pesquisar compulsivamente sobre conteúdos de cristãos gays celibatários. A maioria do material era em inglês. Eu devorei compulsivamente o material do blog Spiritual Friendship. Era exaustivo, mas cada texto era como um bálsamo para a minha ferida aberta.

Em 2014, havia parado de tomar remédio por orientação desse pastor. Desde 2013, eu vinha tomando remédio para TAG, TOC e fobia social. Segundo o pastor, eu era muito jovem para isso. Com a ajuda de Deus, eu conseguiria lidar com minha ansiedade. Fracassei e voltei a tomar remédio.

O grande encontro

O diagnóstico estava fechado, eu era um cristão gay celibatário. Mas ninguém podia saber disso. Eu lembro muito bem que em setembro de 2014, o reverendo Augustus Nicodemus deu uma palestra sobre relações sexuais na primeira igreja presbiteriana de Goiânia. Eu fui com alguns amigos.

Ao final da palestra uma mulher perguntou se homossexualidade era possessão demoníaca. O reverendo Augustus prontamente respondeu que não. Que tratava-se de um pecado como outros e talvez até algumas pessoas nascessem com tendência para esse pecado, como nascem para outros. Ele disse que tanto ele quanto um corpo de presbíteros estavam ali para ajudar quem precisasse.

Somente alguns meses depois eu me deparei com o reverendo no saguão da igreja. Pedi o e-mail dele. Fomos interrompidos por um rapaz e ele pediu para que o rapaz esperasse. Eu me senti importante. Digno de atenção. De 2014 para cá, temos mantido uma relação bastante saudável e muito generosa da parte dele.

Em 2016, eu decidi conversar com minha mãe. Ela sempre foi afetuosa, mas se as coisas dessem errado, eu tinha o apoio do reverendo. Ele incentivou a conversa. Foi bastante agradável. Minha mãe disse que queria que eu continuasse nos caminhos do Senhor independente da minha sexualidade. Um adendo, não acredito que todo mundo tenha que sair do armário. O armário talvez seja a posição mais saudável para algumas pessoas. Se as coisas dessem errado com a minha mãe, eu teria o apoio do reverendo.

Velhos questionamentos com uma nova roupagem

Oficialmente assumido, eu passei a ler mais sobre o tema, porque gostaria de escrever um livro a respeito. Li de fundamentalistas à teologia queer. Eu já tinha uma certa afeição pela teologia neo-ortodoxa.

Um tempo depois, eu conheci uma mulher que colocou meu mundo de ponta cabeça. Extremamente sagaz e inteligente. Eu queria imediatamente me casar com ela. Imaginava a gente educando nossos filhos em casa e tudo.

Reginaldo nera gay, nera? Foi quando percebi que o rótulo de gay se deu mais por uma pressão do que uma descrição exata dos meus sentimentos. Eu podia me assumir atraído por mulheres.

Eu 2018, eu rompi com a igreja presbiteriana do Brasil. Eu já usava um material chamado lecionário, que era um devocional baseado no calendário litúrgico. Nessa nova igreja, orientada pelo neocalvinismo, eu pude ter mais abertura.

Mas em 2020, o luteranismo estava em voga e eu não queria ficar fora dessa. Nessa comunidade vivi momentos alegres e tristes como nas demais.

Em 2020, tive outra guinada na minha sexualidade e minha identidade de gênero. Mas eu vou focar na sexualidade. Enquanto eu via todos os meus amigos se apaixonando e falando sobre sexo. Isso parecia tão anormal para mim. Eu não sentia vontade de fazer sexo e isso parecia tão vergonhoso, tão fora da curva. Até as pessoas que acho que gostei romanticamente, eu não me imaginava tendo relações sexuais. Até com a mulher, eu imaginava adoção de crianças a ter que fazê-las,.

Sexo nunca foi uma possiilidade viável para mim. Apesar de nunca ter me envolvido sexualmente, eu acho desgastante toda essa troca de fluidos para um prazer tão fugaz. Prefiro comer bolo de chocolate.

O bolo de chocolate é um dos símbolos da comunidade assexual ( o lema é: prefiro comer bolo a fazer sexo”). É preciso informar que a comunidade assexual é complexa e extensa, costuma-se falar em espectro assexual porque há dezenas de variantes.

Foi então que num momento bem delicado da minha mãe em que ela ia passar por uma cirurgia de risco, resolvi novamente sair do armário como assexual. Ela foi super empática, disse que ninguém precisava de um relacionamento romântico para viver e ser feliz.

Eu tenho transtorno bipolar. Quando estou em episódio de mania minha libido vai lá em cima. Isso me fez questionar se eu era pansexual.

O que fazer com todos esses rótulos

Foi quando me veio à mente um texto que tenho ruminado há muito tempo. O texto Against heterosexuality [Contra a heterossexualidade, em tradução] livre [1], do Michael W. Hannon.

Resumindo o argumento de Hannon, ao invés da igreja mirar nos cristãos que estão se identificando como gays, existe algo mais maléfico: a naturalização da categoria heterossexual. O fato de muitos cristãos se identificarem acriticamente como heterossexuais gerou essa confusão na igreja.

Se a homossexualidade nos liga ao pecado, a heterossexualidade nos cega para ele, diz Hannon. Os conservadores guardiões da moralidade não veem nenhum problema com a heterossexualidade, foi assim que Deus criou Adão e Eva.

É um erro anacrônico colocar Adão e Eva como um casal heterossexual. Afinal, Deus criou Eva para Adão. Supõe-se que a atração fosse mutuamente exclusiva. Algo diferente do que vemos no conceito de heterossexualidade.

Foucault é um inesperado aliado. Em “História da sexualidade vol,1 A vontade de saber”, O filósofo francês desvenda que tanto a heterossexualidade como a homossexualidade foram criações do século XIX, quando a ciêcia tinha interesse em se desvincular da Igreja e legitimar práticas que a igreja condenava. A sodomia deixou de ser uma prática e passou a ser uma identidade patologizada. A análise foucaultiana é totalmente antiessencialista. Ninguém nasce hétero ou gay, todo mundo torna-se. E esse tornar-se marginaliza quem não se identifica com o rótulo heterossexual.

E agora, como viveremos?

O que fazer com esse imbróglio? A igreja precisa ser combatente da heterossexualidade. Cristãos não devem se rotular ou fazer com que outros se rotulem assim. Não faz parte da nossa antropologia, é impreciso e gera mais calor do que luz. Principalmente se a pessoa não for heteressexual. Essas identidades são mais ficções do que realidades concretas.

Tem um exemplo cômico que o Hannon usa. Imagine que em nossas igrejas haja homens que só se sintam atraídos por sua mulher e há outros que sentem atração por várias mulheres. Se o primeiro grupo começasse a se chamar fiel e o segundo infiel. Não haveria algo de perigoso nisso? Identificar-se a partir de suas inclinações sexuais não é algo saudável.

Como podemos resolver isso? Em “Against obsessive sexuality”[ Contra a obsessão sobre sexualidade, em tradução livre]. [2], Michael Hannon desenvolve uma resposta aos seus críticos. O conceito de orientação sexual é muito recente e ele está dando sinais de que vai ruir, quanto antes nos afastarmos dele, mais temos chance de ser fiéis ao nosso Senhor e de oferecer um direcionamento exato à igreja.

Quanto a mim, eu deixei de me definir de acordo com meus desejos. Eu fico imaginando os problemas que as pessoas tinham antes do surgimento da orientação sexual e de toda essa pressão para escolher uma. O abade Aelredo de Rievaulx não precisava lidar com isso na Idade Média. Isso me faz concluir o mesmo que aquele teólogo: o futuro está no passado.

A indagação de Hannon é pertinente: e se nossas crianças, adolescentes e adultos aprendessem formas mais saudáveis de lidar com seus desejos? Enfim, isso é apenas uma provocação que tem um detalhamento nos textos já mencionados do Hannon. Em outro momento, eu pretendo desenvolver uma pedagogia da castidade alternativa à essa obsessão sexual.

Encerramento

Eu perdi a esperança no movimento LGBT. Criou-se uma guerra civil sobre quem sofre mais. A solidão da mulher negra bissexual é maior que a solidão de um homem branco trangênero gay? Enfim, como diz um amigo meu, a comunidade LGBT deixou de ser comunidade há muito tempo.

Enquanto isso, a dona Maria está vendendo o almoço para comprar a janta na periferia. Criou-se tanto barulho em torno da orientação sexual, mas esse barulho não se tornou em ações sociais concretas para as pessoas pobres. Precisamos eleger prioridades. E como sou da velha guarda, a pobreza é sempre o primeiro problema social a ser enfrentado. Dona Maria pode ser uma mulher que se relaciona com pessoas independente do gênero, mas é periférica e não tem o que comer. Não muda praticamente nada na vida de uma pessoa pobre se ela assumir uma identidade dissidente. Ela só estará sujeita a sofrer preconceito.

Isso mudaria radicalmente se a pessoa dissidente tiver dinheiro. Uma mulher, que se relaciona com pessoas independente do gênero, com um salário digno e com boas condições de vida, com certeza sofrerá menos, se chegar a sofrer.

Enfim,

Trabalhadoras e trabalhadores, uni-vos!

1. <https://www.firstthings.com/article/2014/03/against-heterosexuality>

2. <https://www.firstthings.com/web-exclusives/2014/08/against-obsessive-sexuality>

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Vivendo em Comunhão

Iniciativa fraterna interessada em promover a perspectiva cristã saudável sobre gênero, sexualidade, raça, Comunhão, Amizade e Hospitalidade.