E se o meu corpo tivesse raça?

Vivendo em Comunhão
4 min readFeb 15, 2024

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A arte é formada por duas imagens sobrepostas: uma é a adaptação da pintura em que uma mão representando a mão de Deus toca a mão humana, mas com ambos os corpos negros. A outra imagem é de uma mulher negra com turbante preto no alto da cabeça, tendo o rosto com vitiligo, uma condição que produz a descoloração da pele. Um recorte da obra de Harmonia Rosales.

E se o meu corpo tivesse raça?

Você não consegue me rotular.

Karol conká

Cravar um rótulo em alguém é tão atroz quanto retirá-lo.

Michel Foucault

Para nós, aquele que adora o preto é tão “doente” quanto aquele que o execra.

Frantz Fanon

Quando eu comecei a pensar sobre raça

Eu não lembro exatamente quando passei a pensar criticamente sobre raça. Mas eu me lembro que na infância eu me percebi negro, justamente numa situação oposta. Uma amiga de infância só tomava café preto na esperança de deixar de ser branca. Foi então, que eu pude pela primeira vez notar, que o meu corpo tinha raça e que isso era desejado por algumas pessoas.

Outro episódio que me fez pensar sobre raça ainda na infância, foi quando um amigo branco me chamou de pó de carvão, eu entendi que ele estava tentando me ofender, então, como uma criança saudável, revidei e o chamei de pó de arroz.

Caminhando para uma consciência crítica

Esses acontecimentos supracitados aconteceram no Maranhão. Em 2011, eu tinha 15 anos e me mudei para Senador Canedo, Goiás, com minha família, minha mãe e meu irmão. Nessa época era obcecado por datas específicas do calendário secular.

Foi então que me deparei com o Dia da Consciência Negra. A escola não tinha nenhuma iniciativa para celebrá-lo. Foi então que eu pintei metade da face de branco, como tinha visto na internet. Em 2011, eu fiz white face. Acho que um amigo branco pintou a outra metade do rosto dele de preto e conversamos um pouco sobre a necessidade de reflexão sobre o tema.

Eu não lembro de reflexões profundas sobre racismo no ensino médio. E teve uma época 2012–2015 que eu esqueci que era negro. Eu não pesquisava, não sabia de dados. Eu simplesmente me fechei no meu mundinho de leituras fantásticas, filosóficas e teológicas.

Lembro de um momento específico, no qual estava na casa de um amigo e toda família dele era branca. “Pai, por que o Regi é marrom?” Questionou a criança de uns 5 anos. Eu estava lendo bastante sobre teoria da evolução. Eu estava traduzindo informações científicas complexas para explicar para uma criança, sobre o longo processo evolutivo, quando o pai dele disse simplesmente: porque Deus criou pessoas de diferentes cores.

Eu fiquei tão frustrado com a resposta. Perdemos a oportunidade de ensinar ciência para uma criança.

Agora sim pensando raça criticamente

Tudo mudou quando eu entrei no Instituto Federal de Goiás, para cursar Letras, em 2015.

Como dizem aqueles versos: minha cor não me atrapalhou, só me abençoou. Foi na faculdade que eu me muni de recursos teóricos para pensar raça criticamente. Diferente de outros negros, eu nunca fui abordado pela polícia, nunca senti que estava me seguindo em lojas ou ainda que alguém tenha mudado de calçada pela cor da minha pele.

Veja bem, eu não estou negando que essas coisas acontecem. Só não aconteceram comigo. E eu não sei o motivo.

E esse tal letramento racial?

Letramento racial ainda é uma coisa muito elitizada. Por exemplo, minha mãe não tem estudo, a recenseadora perguntou a cor da minha mãe, minha mãe é explicitamente parda, ela disse que era amarela, se eu não tivesse feito uma intervenção, minha mãe teria sido recenseada como amarela.

Outra coisa, ninguém com o mínimo de conhecimento de letramento racial quer ser branco. Tenho uma conhecida militante que é explicitamente branca e conversando com a recenseadora chegaram à conclusão de que ela é parda.

A fragilidade da raça

Enfim, o conceito de raça é um conceito frágil e impreciso em muitos contextos. Fora que se uma pessoa sai do Brasil, a classificação pode seguir outros parâmetros como antecedentes de determinada etnia como ocorre nos EUA.

Como resolver esse imbróglio? Primeiro, precisamos deixar claro que a racialização dos corpos não é ontológica. Não existe uma essência negra ou branca. Nascemos corpos e somos historicamente racializados. Há dor e beleza nisso tudo.

Eu sou negro? Parafraseando Butler, eu não costumo pensar em mim mesmo como negro todos os dias. Nem costumo me chamar assim. Não considero o ser negro a base da minha ontologia. Mas por razões pragmáticas, às vezes, me refiro a mim mesmo como negro.

A questão não é eliminar as raças, mas evidenciar que existem problemas mais abrangentes, como classe. A fome não escolhe cor e atinge 33 milhões de pessoas no Brasil cotidianamente.

O movimento negro tem se dividido e algumas pessoas acham que ter lugar de fala é essencial no debate sobre racismo, já outras apelam para a representatividade. O que dizer do vergonhoso debate proporcionado por aquela feminista negra sobre pessoas que menstruam? Enquanto isso, centenas de pessoas que precisam não têm acesso a absorventes.

O meu ponto principal é que essas discussões não levam comida para o prato de quem precisa. Elas são inúteis. Só dão protagonismo para algumas pessoas e as beneficiam. Precisamos de mais reflexão no chão operário. Que traga de fato mudança para a classe trabalhadora.

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Vivendo em Comunhão

Iniciativa fraterna interessada em promover a perspectiva cristã saudável sobre gênero, sexualidade, raça, Comunhão, Amizade e Hospitalidade.